Entrevista: Bióloga explica HIV e o estigma da doença

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Atualmente, estima-se que 866 mil pessoas vivam com o vírus HIV no Brasil. Apesar da epidemia ser considerada estabilizada, o país registrou aumento de 21% de casos de HIV entre os jovens, segundo a ONU.

Por isso, é sempre importante abordar o assunto e alertar para os riscos dessa infecção sexualmente transmissível.

A bióloga e assessora científica da Biometrix Diagnóstica, Renata Morishita, explica as diferenças entre AIDS e HIV e fala também sobre os preconceitos que rondam o tema.

Por que quando falamos de AIDS ainda há muito preconceito sobre o assunto?

Esta doença sempre foi inserida em um contexto de muito preconceito porque é uma doença sexualmente transmissível.

Eu sempre falo que quando a gente nasce a gente é um papel em branco e não sabemos o que escrever nele. Tudo o que vem escrito nesse papel em branco é o que a gente recebe de nossa família e da nossa comunidade.

E todos esses conceitos adquiridos, a gente assume como verdade. Então quando você ouve sua tia falando “ah, menina, fecha essa perna”, ou “fica aí brincando de boneca que os meninos vão brincar lá fora”. Ou quando começa na adolescência e a mãe pega o menino se masturbando e fala “tá errado, não pode, que feio” a pessoa vai colocando isso como verdade, que não pode, que é feio, o que é certo, o que é errado.

E na adolescência, naquela explosão de hormônios, o jovem tem vontades e desejos, aí fica naquilo “não, mas não posso”, seja porque é errado, porque o pai falou que não pode, e você respeita porque são as pessoas que você ama, assumindo aquilo como verdade. E muitas vezes aquilo vai contra o que você sente.

A questão do sentimento e da sexualidade e do desejo é algo inerente do ser humano. Quando a criança é pequenininha ela tem a fase oral. O que acalma a criança? É colocar chupeta, mamadeira.

Depois quando é um pouco maior, a gente sabe o que nos agrada, o que nos faz bem, isso independe do sexo ou de como você consegue aquela fonte de prazer. Isso é muito diverso no ser humano, mas não falamos sobre isso porque ainda é criado como um tabu.

Quando você não fala, não conhece, é aí que entra a chance de ter um problema, de fazer alguma coisa contra a sua saúde sem você saber, porque não é falado e não é discutido.

É importante a gente chegar em uma época e rever aquilo que está escrito naquela folha, o que cabe ou não na sua vida porque você já sabe o que você gosta, já saibe o que você quer.

Por mais que você ame e respeite seus pais, seus parentes, tem que sempre avaliar o que é melhor para você. Isso é muito difícil, porque está enraizado nas pessoas, isso é muito forte, e toda sociedade já tem um peso disso também. Então quanto mais se conversa, mais fácil é você falar “não, realmente na época dos meus pais era assim, mas eu não preciso viver dessa forma”.

Isso com a questão da AIDS, do HIV é muito sério. As pessoas não discutiam, porque achavam que a homossexualidade era errada, porque as profissionais do sexo são erradas, então, se é errado a gente simplesmente não fala sobre isso, e isso deixa as pessoas mais vulneráveis.

No início dos anos 90 quando surgiu o HIV foi um grande choque…

Isso foi o que colaborou para a doença se disseminar tão rápido. Os primeiros casos de HIV e de AIDS, que é a forma do vírus atuar no organismo, foi em uma comunidade gay nos Estados Unidos.

Aí começou a ser colocado na mídia como uma doença daquela comunidade em específico, foi visto como se fosse um castigo divino, mas foi um surto e até as pessoas entenderem isso ficou muito estigmatizado. As pessoas que eram heterossexuais não se sentiam parte desse problema de saúde.

E foi na década de 90 que a AIDS começou a aparecer na mídia, com algumas pessoas famosas consideradas mártires aqui no Brasil.  O Cazuza foi um dos primeiros casos de uma pessoa famosa homossexual com AIDS, e na época ele foi detonado na mídia.

A VEJA fez uma entrevista com a mãe dele, aí pensamos “legal, vamos conseguir falar um pouco mais sobre a doença, expor isso, mostrar para as pessoas o perigo que é”. Mas a revista colocou como uma doença da comunidade gay, colocou uma foto dele chocante, com a doença muito avançada, reforçando aquela visão negativa da doença e alastrando o preconceito.

Capa da Revista Veja Cazuza com HIV

O vírus não atua diretamente causando um sintoma, são várias outras doenças que se desencadeiam porque o sistema imunológico está debilitado. É isso que caracteriza a AIDS que é uma síndrome, uma série de sintomas associados, que juntos caracterizam a pessoa com HIV dominante no organismo.

A reviravolta da AIDS aconteceu no final dos anos 90, quando o Magic Johnson, no auge da carreira no basquete nos Estados Unidos, heterossexual, esportista veio a público falar que tinha HIV. E as pessoas se perguntavam: “mas como?”, “o que aconteceu?”.

Aqui no Brasil tivemos o caso da Sandra Bréa, uma atriz famosa também heterossexual. Ela apareceu com AIDS quebrando esses paradigmas de que não era uma doença específica de uma parte da sociedade, mas que tinha que ser pensado como um todo.

Qual a diferença entre HIV e AIDS?

O Ministério da Saúde trocou a nomenclatura das doenças que são sexualmente transmissíveis. Agora são chamadas de infecções sexualmente transmissíveis (IST).

Doença a gente sempre associa com um sintoma, uma característica física de que ele está doente. As infecções sexualmente transmissíveis nem sempre causam uma doença. Muitas pessoas têm o vírus, são infectadas pelo HIV mas elas não desenvolvem nenhum sintoma.

Elas têm essa infecção, podem transmitir este vírus, mas elas são aparentemente saudáveis. Quando o corpo não consegue lutar com esse vírus, ele se alastra e começa a afetar alguns sistemas. O sistema imunológico é o primeiro porque é onde o vírus se acopla no organismo. Então você indiretamente começa a ter outras doenças, há muito risco associado a tuberculose, pneumonia e outras doenças oportunistas.

O vírus não atua diretamente causando um sintoma, são várias outras doenças que se desencadeiam porque o sistema imunológico está debilitado. É isso que caracteriza a AIDS que é uma síndrome, uma série de sintomas associados, que juntos caracterizam a pessoa com HIV dominante no organismo.

Hoje existem várias opções de tratamento e a sobrevida das pessoas é muito maior. Ou seja, você é soropositivo e possui o vírus no seu organismo, mas com a medicação essa taxa de vírus fica muito pequena. É como se deixasse o vírus ali no cantinho, dormindo e você está vivendo a sua vida normal.

Hoje as pessoas que têm o vírus indetectável conseguem manter o tratamento, tem uma vida saudável e não são transmissoras do vírus. Ou seja, é soropositivo, mas se fizer sexo desprotegido não vai infectar outra pessoa.

O que justifica esse aumento considerável da AIDS no público jovem?

Os jovens de hoje não viveram aquela parte do HIV dos anos 80 que não tinha cura, que era uma sentença de morte, que as pessoas morriam debilitadas, lembrando aquela foto do Cazuza. Um dos últimos famosos que me lembro ter morrido de AIDS foi o Renato Russo, em 1996, muitos desses não eram nem nascidos ainda.

As pessoas não vêm mais isso como uma sentença de morte. As pessoas soropositivas têm uma vida normal e as pessoas ficam um pouco mais negligentes. Não é dada aquela importância a prevenção como foi nos anos 90. Então hoje a maior incidência de infecção é entre os jovens.

Eles pensam ‘não é uma doença grave em que eu vou morrer’, então isso ainda reflete um pouco nesta questão.

Quais são as formas de contágio da doença?

É sempre importante pensar que ele é um vírus, fica constantemente em nossa circulação sanguínea e ele fica em nossas secreções. Mas ele tem lugares específicos. Por exemplo, as pessoas muitas vezes têm medo de saliva, de compartilhar um copo ou talher, mas esse vírus ele não consegue se alojar na saliva. Seriam necessários 5 litros de saliva para ter uma quantidade de vírus que possa infectar alguém, então isso não é viável.

A transmissão ocorre pela via sanguínea e via sexual. Sexo vaginal, anal ou oral sem camisinha. A transmissão não ocorre só do homem para a mulher. Se a mulher alguma ferida

interna e ocorrer um pequeno sangramento que não é visível, pode transmitir. É uma probabilidade muito menor, mas existe.

Da mesma forma o sexo oral, a probabilidade de transmissão do vírus é muito pequena, mas existe.

É isso que dá ao jovem aquela sensação de que “não precisa usar camisinha”. A gente tem que pensar que o HIV é uma das infecções sexualmente transmissíveis, além e outras tantas que estão associadas. Transar sem camisinha só vai pegar o HIV, tem também sífilis, gonorreia, HPV, HCV e etc.

interna e ocorrer um pequeno sangramento que não é visível, pode transmitir. É uma probabilidade muito menor, mas existe.

Da mesma forma o sexo oral, a probabilidade de transmissão do vírus é muito pequena, mas existe.

É isso que dá ao jovem aquela sensação de que “não precisa usar camisinha”. A gente tem que pensar que o HIV é uma das infecções sexualmente transmissíveis, além e outras tantas que estão associadas. Transar sem camisinha só vai pegar o HIV, tem também sífilis, gonorreia, HPV, HCV e etc.

Este ano o Ministério da Saúde lançou uma campanha direcionada aos jovens falando um pouco dessas outras doenças, porque muitas vezes elas são assintomáticas, elas não têm nenhum sintoma. A menina tem HPV, mas ela não tem secreção, não tem dor, não tem febre, e aí transa sem camisinha e transmite este vírus sem saber.

A campanha mostra como é a doença quando ela afeta o organismo, são feridas, cancros, bolhas, fístulas, aí é claro, uma coisa feia. É muito engraçado porque pegam o celular e mostram para as pessoas. A gente quer instigar o jovem a procurar no Google as imagens. Então você coloca lá “clamídia imagens”, “gonorreia imagens”, aí quando as pessoas veem ficam ‘ui que nojo’.

Isso foi legal porque instigaram o jovem a ele mesmo procurar e ver. Aí quando você vê entende a consequência daquela doença, aí pensa, se é ruim de ver, imagina de ter.

Para o jovem isso é algo que precisa ser mais trabalhado.

Isso foi legal porque instigaram o jovem a ele mesmo procurar e ver. Aí quando você vê entende a consequência daquela doença, aí pensa, se é ruim de ver, imagina de ter.

Para o jovem isso é algo que precisa ser mais trabalhado.

Tem uma série na Netflix que se chama Elite, que mostra um colégio de alta classe e mostra uma aluna super rica que se envolve com um menino da periferia. Ela é contaminada pelo HIV, mas tem acesso aos melhores tratamentos e ela é indetectável. Ela é soropositiva, todo mundo fica sabendo e sofre bastante bullyng na escola.

Aí ela foi transar com o outro namorado dela e ele diz: “espera, mas você não é HIV positivo?” Ela diz “não, sou indetectável”. Eles fazem sexo sem proteção e o que acontece? Ela engravida.

Então não tem que pensar só na questão da transmissão da infecção, se você faz o exame e dá negativo, tem essa questão também da gravidez indesejada.

Às vezes, a gente fala de coisas muito dispersas, mas temos que colocar isso como um todo. Temos que falar sobre saúde, sexualidade, isso envolve a questão do preconceito, envolve a questão das profissionais do sexo, transsexuais, são pessoas que são totalmente marginalizadas, ou seja, elas estão à margem da sociedade, elas não existem para as pessoas dentro das bolhas delas.

Uma das coisas legais que existe hoje com estas novas metodologias é o PrEP, que é uma questão de prevenção, como se fosse uma profilaxia. Existem uma série de medicamentos antirretrovirais que mesmo não sendo HIV positivo você toma porque se você entrar em contato com o vírus, a possibilidade dele ficar em seu organismo é muito pequena. Então é uma profilaxia, é uma prevenção.

Isso começou a pouco tempo aqui no Brasil, é um projeto do Governo Federal e estão fazendo para pessoas que estão em situação de vulnerabilidade. A gente tem que ter um pouco mais de empatia com as pessoas, não é porque a pessoa é uma profissional do sexo que ela não merece ter uma vida digna e ter uma qualidade de vida. Isso é mais prevalente nos homens homossexuais porque o risco de contaminação entre homens é muito maior. Não precisa julgar, dizendo que a pessoa é promíscua, não interessa, a pessoa é vulnerável, ela corre mais risco de entrar em contato com o vírus, independente do motivo.

É uma forma da pessoa ter uma segurança maior de não ser contaminada. É um sistema em que você se inscreve, eles fazem todos os exames, você passa por uma entrevista, fazem uma ficha, e se você se enquadrar dentro dos pré-requisitos do projeto você começa a receber essa medicação.

Então dá pra viver bem, por exemplo, um casal monogâmico gay, um soropositivo e outro não, nestes casos essa profilaxia também pode ser feita.

Existe um tratado que foi feito em 1994 na França de os países tentarem chegar em uma porcentagem ideal de 90/90. Ou seja, 90% da população ser testada, estando em uma situação de risco ou não, que as pessoas façam o exame, para que elas possam saber qual é seu status.

Então é importante que 90% da população seja testada, que 90% das pessoas que são HIV positivas estejam em tratamento, para diminuir a mortalidade da doença.