Para os trabalhadores de saúde, a morte de uma criança sempre é dolorida, mas essa tragédia dói ainda mais quando se trata de uma doença que poderia ser evitada com uma vacina segura e eficaz.
O professor Berthold Koletzko, um pediatra de um dos maiores hospitais de Munique, viu em primeira mão as consequências alarmantes das crianças sem vacinação. Isso levou à exposição a doenças que, na Europa, já estavam em um passado distante: doenças como o sarampo ou o tétano – que antes ele só tinha visto no exterior em sua juventude.
“O que estamos vendo é que mais pais não estão mais conscientes dos perigos dessas doenças. Quando cresci, muitos de nós conhecíamos crianças que foram lesadas por causa delas. Nós, nos hospitais, ainda vemos seu impacto, mas para as novas gerações de pais, pode parecer muito mais remoto”.
De acordo com dados preliminares da OMS, o sarampo aumentou cerca de 300% globalmente nos primeiros três meses de 2019, em comparação com o mesmo período do ano passado, com aumentos consideráveis em todas as regiões do mundo.
As razões pelas quais as crianças não recebem suas vacinas são diversas. A maioria é consequência de uma falta fundamental de acesso aos serviços de vacinação, com a África Subsaariana – que tem a cobertura mais baixa – responsável pela maior parte do aumento, e a maior carga de casos.
No entanto, em locais com taxas de imunização historicamente altas, a falta de disposição – seja de pais, provedores de saúde, políticos ou governos – também pode desempenhar um papel e tem um custo extremamente alto.
Os surtos de sarampo de hoje sugerem retrocesso generalizado após décadas de progresso duramente conquistado.
Uma história de saúde pública de sucesso
Cerca de 85% das crianças do mundo atualmente recebem vacinas essenciais que salvam vidas, protegendo-as e às suas comunidades não só contra o sarampo, mas também contra difteria, tétano, coqueluche, hepatite B e poliomielite.
Este nível de proteção começou através de uma forte campanha global para aumentar a distribuição das vacinas e torná-las acessível, com o apoio nas últimas décadas de novos parceiros como Gavi, a Vaccine Alliance – com o foco na expansão na disponibilidade de vacinas nos países mais pobres – e a iniciativa Sarampo e Rubéola.
A partir desses esforços, os ganhos na saúde foram altos.
Por exemplo, em 1980, os casos de sarampo chegaram a mais de 4,2 milhões, tendo apenas 21% das crianças vacinadas. Em 2017, o quadro foi revertido para 173 mil casos no mundo todo e a cobertura de 85% de crianças vacinadas.
E houve um impacto similar com muitas outras doenças outrora temidas. Apenas 30 anos atrás, por exemplo, o poliovírus selvagem esteve presente em 125 países, causando milhões de paralisias irreversíveis. No último ano, a infecção por este poliovírus foi reportada apenas em 2 países – Afeganistão e Paquistão – com apenas 33 casos confirmados em todo o mundo.
O tétano maternal e neonatal, uma doença frequentemente fatal, foi eliminada em quase 13 países com a vacinação de mulheres antes ou durante a gravidez.
Os países que introduziram a vacina contra o papiloma vírus humano podem ter resultados promissores na diminuição dos casos de câncer de colo de útero.
Enquanto isso, novas vacinas estão a caminho para proteger contra alguns dos mais perigosos patógenos conhecidos. A vacina da Ebola já desempenhou um papel fundamental no controle do surto na República Democrática do Congo, enquanto a primeira vacina contra malária está sendo testada em programas de imunização de rotina em 3 países africanos.
Fonte: “Vaccines and the power to protect”, realizado pela ONU
Fonte: “Vaccines and the power to protect”, realizado pela ONU
Muitas lacunas na cadeia de proteção
Por muitos anos, as taxas globais de imunização estagnaram. Enquanto 85% de cobertura significa que cerca de 116 milhões de crianças receberam suas vacinas a cada ano, isso também significa que aproximadamente 20 milhões de pessoas não foram atingidas.
Restam oito países nos quais menos da metade das crianças são vacinadas. E há apenas 10 países – Afeganistão, Angola, República Democrática do Congo, Etiópia, Índia, Indonésia, Iraque, Nigéria, Paquistão e África do Sul – que representam a maioria (cerca de 60%) dos não imunizados.
“A maior parte dos não vacinados vivem em lugares onde existem sérios conflitos, pobreza e baixo acesso a vacinação”, explica Dr. Kate O’Brien, diretor de vacinação e imunização da ONU. À medida que as crises humanitárias são mais comuns e prolongadas, com números recordes de desalojados e imigrantes, esses desafios se intensificam.
E mesmo em um país com alta cobertura geral, disparidades gritantes podem existir dentro de suas fronteiras.
“Se uma doença retornar a uma comunidade”, explica O’Brien, “essas lacunas na vacinação podem significar que há oportunidades suficientes para que ela se instale, continue e se espalhe rapidamente”.
Identificando os elos perdidos
Em todos os países de todos os níveis de renda, as desigualdades no acesso são a barreira fundamental para a vacinação, com as crianças mais pobres sendo consistentemente as menos propensas a receber suas vacinas integralmente e no prazo. Mas em alguns países onde o acesso é alto, há também pais que atrasam ou recusam vacinas para seus filhos porque estão incertos ou indecisos sobre a imunização.
Muitas vezes reduzida a uma narrativa única sobre campanhas de “anti-vacinação”, a hesitação da vacina é um fenômeno complexo – com muitas e variadas causas.
Ter dúvidas ou preocupações sobre a vacinação pode estar ligado a fatores como a falta de confiança no sistema de saúde e medicina convencional, ou ansiedades alimentadas por eventos específicos: questões que exigem comprometimento significativo e investimento para resolver.
Durante o surto de Ebola na África Ocidental em Serra Leoa, por exemplo, a cobertura essencial de vacinação despencou quando os pais temiam levar seus filhos a clínicas de saúde. Hoje, a doença está de volta aos altos níveis. Isso exigiu grandes esforços das autoridades para reconstruir a confiança para trazer os pais e seus filhos de volta aos serviços de saúde.
Os pais também podem hesitar porque não dispõem de informações precisas sobre a segurança das vacinas ou a gravidade das doenças contra as quais protegem. Por exemplo, mesmo na Europa, Canadá e Estados Unidos, cerca de 1 em cada 4 crianças com sarampo será hospitalizada, enquanto 1 em 15 sofrerá complicações potencialmente fatais, como pneumonia ou encefalite, um perigoso inchaço do cérebro.
“Os pais estão cada vez mais expostos a informações muito confusas e conflitantes sobre vacinas”, explica Koletzko.
O perigo é que, onde há essa incerteza, ela pode ser alimentada por campanhas de desinformação, particularmente on-line, com pessoas cada vez mais polarizadas em tomar “lados”.
On-line, tal desinformação pode viajar rápido, longe e através das fronteiras, com afirmações infundadas, assédio de defensores de vacinas e conteúdo não científico nocivo, reproduzido por meio de vírus em plataformas digitais.
Com tudo isso, há muito que pode ser feito para tornar a vacinação facilmente acessível e conveniente, garantindo ao mesmo tempo que o público esteja bem informado e seja “alfabetizado em vacinas”.
As evidências mostram que, globalmente, pouquíssimos pais são abertamente contrários à vacinação. “A realidade é que, onde existe a oportunidade, a maioria dos pais decide vacinar seus filhos a tempo”, explica Lisa Menning, especialista em questões de demanda de vacinas da OMS. “Alguns estão inseguros ou relutantes; uma minoria muito pequena simplesmente recusa”.
Quando aqueles que são incertos ou desinformam se tornam o foco, vemos que há oportunidades para entender e abordar suas preocupações. “É de vital importância ouvir as perguntas e preocupações dos pais e respondê-las com cuidado e compaixão”, acrescenta ela.
Por que é tão importante a vacinação?
A imunização previne doenças, invalidez e morte por doenças evitáveis por vacinação, incluindo câncer cervical, difteria, hepatite B, sarampo, caxumba, coqueluche (tosse comprida), pneumonia, pólio, diarreia por rotavírus, rubéola e tétano.
Enfrentar a propagação da desinformação da vacina também é importante. Diversas plataformas on-line deram passos iniciais bem-vindos para reprimir notícias falsas relacionadas à vacina – mas não é o ponto final. Há um trabalho crítico necessário a longo prazo para construir a alfabetização em saúde e resiliência de uma população a rumores e desinformação, e para construir confiança nos serviços de saúde.
Isso requer estratégias abrangentes: em vez de apagar incêndios, devemos trabalhar para promover os benefícios das vacinas por meio da vida de uma pessoa e envolver todos os profissionais de saúde nessa busca. “Todo check-up”, diz O’Brien, “deve ser uma oportunidade para verificar a vacinação”.
Isso abrange profissionais de saúde de todos os tipos: de parteiras que têm uma grande parcela de contatos iniciais com novos pais, para farmacêuticos, clínicos gerais e enfermeiros. Para ser uma fonte confiável de informações, “eles devem ter as ferramentas e o tempo disponível para se envolver adequadamente com os pais nessa questão crítica”, diz Menning.
Também significará, ela acrescenta, construir sistemas de imunização e, de fato, serviços de atenção primária que merecem a confiança dos pais – que são acessíveis e humanizados.
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