
De superbactérias a fungos resistentes, o mundo enfrenta uma ameaça silenciosa alimentada pelo uso incorreto de antibióticos.
A resistência aos antimicrobianos tem crescido de forma alarmante. E o Brasil não está fora desse mapa. Não é à toa que a Semana Mundial de Conscientização sobre Resistência a Antimicrobianos tem papel fundamental na conscientização.
Segundo o Ministério da Saúde, a RAM (resistência antimicrobiana) já é responsável por cerca de 34 mil mortes diretas por ano no país. Outras 138 mil mortes anuais estão associadas a infecções causadas por microrganismos que não respondem mais aos medicamentos disponíveis.
Por trás desses números, a realidade é ainda mais preocupante. O uso indiscriminado de antibióticos, juntamente com o surgimento de “superbactérias”, fungos e outros agentes resistentes, tem criado um cenário claramente e perigosos.
No universo do entretenimento, vírus, bactérias e fungos mortais há tempos dominam o enredo de séries, filmes e jogos. Em The Last of Us (2013), um fungo do gênero Cordyceps sofre mutações e passa a dominar o cérebro humano, transformando pessoas em hospedeiros. Já em Plague Inc., o jogador é o próprio vírus: a missão é disseminar uma infecção global antes que a humanidade consiga desenvolver uma cura.
Ambos os mundos exploram a fragilidade das sociedades diante de agentes infecciosos, e o quanto as ações humanas podem acelerar (ou conter) uma catástrofe biológica.
Na realidade, o inimigo é menos cinematográfico, mas igualmente ameaçador. Fungos como o Candida auris, resistentes a praticamente todos os antifúngicos, e bactérias como Klebsiella pneumoniae, Acinetobacter baumannii e Pseudomonas aeruginosa desafiam os antibióticos mais potentes disponíveis. O que antes era infecção tratável, hoje pode se tornar um quadro de difícil controle.
Não por acaso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica a resistência antimicrobiana como uma das dez maiores ameaças à saúde global.
Antibióticos não são analgésicos
Um dos fatores que contribui diretamente com o aumento a resistência aos antimicrobianos é justamente o uso indiscriminado de antibióticos. Segundo o Ministério da Saúde, o consumo desses medicamentos no país aumentou mais de 31% entre 2014 e 2019.
Além disso, outro dado preocupante é o fornecido pela Sociedade Brasileira de Infectologia. De acordo com a entidade, em 2024, quase 25% da população brasileira revelou ter utilizado antibióticos por conta própria. E, em sua maioria, para tratar dores de garganta, gripes e resfriados.
O grande problema disso é justamente o fato dessas doenças terem origens virais. Ou seja, não requererem esse tipo de medicamento.
No Brasil, a venda de antibióticos é restrita desde 2010. Somente apresentando receita médica em duas vias é que é possível comprar esse tipo de medicamento.
A medida foi implementada justamente tentar evitar o aumento a resistência aos antimicrobianos. Mas mesmo após 15 anos da implementação da medida, o país ainda enfrenta um cenário de alerta.
Desde 2010, a venda de antibióticos no Brasil é restrita à apresentação de receita médica em duas vias. A medida foi criada justamente para conter a resistência, mas, mesmo após 15 anos, o país ainda enfrenta altos índices de automedicação e prescrição inadequada.
O preço da automedicação
Mas afinal, o que a automedicação e a prescrição inadequada podem desencadear? Quando um antibiótico é usado sem necessidade ou de forma incorreta, ele perde poder contra as bactérias que deveria combater.
Consequentemente, a cada exposição desnecessária, esses microrganismos “aprendem” a se defender, e evoluem em versões mais fortes e resistentes. De acordo com o Ministério da Saúde, uma em cada 6 infecções bacterianas confirmadas em laboratório é resistente a antibióticos.
O resultado? Infecções mais graves, internações prolongadas e tratamentos cada vez mais caros e limitados.
A automedicação não é apenas um risco individual: é um problema coletivo, que ameaça a eficácia dos medicamentos disponíveis para todos.
E, em muitos casos, essa prática abre caminho para uma das condições mais perigosas da medicina moderna: a sepse.
Quando uma infecção resistente foge ao controle, o organismo reage de forma intensa, desencadeando uma resposta inflamatória generalizada que pode levar à falência de órgãos e morte.
Segundo o Ministério da Saúde, a sepse é uma das principais causas de mortalidade hospitalar no Brasil. São registrados cerca de 400 mil casos de sepse em pacientes adultos por ano. Desse total, 240 mil morrem, um índice de 60%.
Quando a ficção alerta a realidade
De Resident Evil a A Plague Tale: Innocence, os jogos e filmes usam pandemias como metáforas do colapso humano, do medo do desconhecido ao poder da ciência.
A diferença é que, fora das telas, o desastre não vem de experimentos secretos de fatores mais palpáveis e realistas. Apesar de não existirem super fungos ou bactérias que transformem seres humanos em zumbis, as superbactérias que já existem têm dificultado cada vez mais os tratamentos médicos.
Além disso, é importante ressaltar que a resistência aos antimicrobianos também acaba desencadeando problemas como:
- O comprometimento de quimioterapia, uma vez que há ausência de antibióticos eficazes;
- Prolongamento de doenças e necessidade de uso de medicamentos mais caros e fortes, o que gera um custo maior para pacientes com infecções resistentes;
- Anualmente, cerca de 480 mil pessoas desenvolvem tuberculose multidroga resistente e a resistência aos medicamentos também está começando a complicar a luta contra o HIV e a malária.
A conscientização como aliada no combate a Resistência aos Antimicrobianos
A resistência antimicrobiana é uma crise silenciosa, mas totalmente prevenível.
Cada escolha individual conta: não se automedicar, concluir o tratamento prescrito, buscar diagnóstico laboratorial e manter a vacinação em dia são atitudes que salvam vidas.
A Semana Mundial de Conscientização sobre Resistência a Antimicrobianos, promovida pela OMS entre 18 e 24 de novembro, é um lembrete de que agir agora é proteger o futuro.
Entre as ferramentas mais poderosas para frear esse avanço está o diagnóstico correto, especialmente o diagnóstico molecular.
Enquanto os exames convencionais podem levar dias para identificar o agente causador da infecção, os testes moleculares permitem detectar de forma rápida e precisa o microrganismo e seus mecanismos de resistência.
Isso garante ao médico a possibilidade de escolher o antibiótico certo, na dose certa e pelo tempo adequado, evitando o uso desnecessário de medicamentos de amplo espectro e reduzindo o risco de novas resistências.
Mas tecnologia sozinha não basta. O acompanhamento especializado é essencial para que o tratamento seja conduzido com segurança, eficiência e responsabilidade.
É importante lembrar que antibiótico não é um tratamento comum: é uma ferramenta terapêutica valiosa e limitada, que precisa ser usada com a seriedade e o respeito que sua função exige.
Cada uso inadequado enfraquece não apenas o medicamento, mas também o sistema de saúde e a capacidade da medicina moderna de salvar vidas.